quinta-feira, 16 de março de 2017

Um internacionalismo do século XXI, contra o capitalismo e o nacionalismo (3)

Uma vez que o capitalismo vem dispensando as nações, é tempo de dispensar o capitalismo, de construir redes rizomáticas globais, com alicerces locais, assentes no conhecimento mútuo e em práticas democráticas de decisão. Tempo de praticar a escalada que começa na indignação, passa pelo protesto, pela mobilização, pela organização, pela desobediência até se chegar à revolta.

Sumário

1 - Uma (des)ordem económica e política
2 - A globalização é um processo
2.1 - Como o capitalismo vem cavalgando a globalização
2.2 - A instituição de um estado de excepção generalizado
3 - Os grandes promotores do desastre
3.1  - As ameaças vindas das classes políticas
4 – A leitura do contexto.
4.1 - As alternativas possíveis e as desejáveis
4.2 – O desenvolvimento do espirito do fascismo

4.3 – Um novo internacionalismo, precisa-se!

(primeira parte deste texto aqui e a segunda, aqui)



4 – Leitura do contexto

4.1 - As alternativas possíveis e as desejáveis

A contestação social, dos trabalhadores e da multidão em geral, acompanhou o desenvolvimento do capitalismo desde o seu alvor.

Em meados do século XIX, na Grã-Bretanha, a instalação do sistema de fábrica animou os industriais a querer sobreviver com a desqualificação do trabalho, com reduções salariais, utilizando de modo massivo, mulheres e crianças. O movimento cartista conduziu à substituição no aparelho de estado, dos aristocratas pelos capitalistas industriais, ao fim das leis protecionistas que encareciam os cereais para benefício dos donos de terras com prejuízo para a maioria da população, sobretudo dos trabalhadores; e conduziu ainda à proteção e regulamentação do trabalho infantil e feminino, à instauração das dez horas de trabalho e à criação de associações políticas.

Centrada na década de 1870, a crise financeira e a grande depressão de 1873/86 é acompanhada com a criação de cartéis e monopólios, divisão de mercados, protecionismo e controlo dos preços, desencadeando-se ainda um verdadeiro assalto às regiões do mundo ainda não colonizadas. O forte desenvolvimento da automação provoca um ataque aos salários dos operários especializados da indústria, enquanto uma grande massa de camponeses empobrecidos e imigrantes surgia nas cidades. Neste contexto, geraram-se as primeiras grandes movimentações de trabalhadores, a multiplicação de sindicatos e greves, (na Grã-Bretanha, em 1867/75 aceita-se a existência de sindicatos e o direito à greve) e surgiu a Comuna de Paris.

Acontece ainda a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que acentuando o caráter federal e a solidariedade entre os trabalhadores, viria a distinguir-se pela demarcação total face aos sistemas políticos, pelo repúdio do Estado e da autoridade.

Depois da I Guerra, as dificuldades do capitalismo impuseram-se e reduziu-se a interação com o movimento sindical nas suas adaptações; essas dificuldades apontaram mais para um aumento do papel do Estado em geral - na URSS[1] e na Alemanha em particular - incorporando os sindicatos nas derivas nacionalistas e fascistas (Alemanha[2], Itália[3], Portugal[4]). O abandono do padrão-ouro contribui para os encerramentos nacionalistas, as ditaduras fascistas e promoveu a construção de infraestruturas para redução do desemprego nos EUA (New Deal) ou na Alemanha, no âmbito do que se viria a chamar as políticas keynesianas. A repressão salarial mostra não ser suficiente para gerar novo ciclo ascendente, apesar das divisões entre os trabalhadores e do recurso ao trabalho forçado na URSS, na Alemanha hitleriana[5] e nas colónias europeias de África. Na verdade, é a preparação para a guerra com a produção massiva de armamento, que permite um alívio na conjuntura depressiva.

As esperanças do internacionalismo ficaram circunscritas ao apoio militante à República espanhola enquanto as “democracias” ocidentais olhavam para o lado, alheando-se da intervenção nazi e fascista em Espanha, que ficou dependente do apoio soviético. Os campos de concentração, a emigração de militantes, a extensiva repressão, anunciavam a catástrofe iniciada em 1939.

A seguir à II Guerra, a violência das destruições de equipamentos e vidas durante o conflito exigiu a grande mobilização de trabalhadores para a reconstrução, criando-se nos países desenvolvidos, como contrapartida, o estado-providência (garantias face a desemprego, férias pagas, acesso a sistemas universais de saúde, educação massificada), como forma de pacificação social, visando o abandono de lógicas anticapitalistas, aceitando-se reivindicações económicas, normalmente defensivas e conservadoras, no âmbito da ligação dos sindicatos a partidos políticos.

Os EUA, através do plano Marshall, financiaram as suas exportações para a Europa, procurando manter os níveis de crescimento após a redução do esforço de guerra; como procuraram com esses financiamentos coartar as hipóteses de reprodução do modelo soviético, então com muitas simpatias, dado o contributo da URSS para a derrota nazi.

Neste contexto de potencial concórdia e concertação social, no chamado mundo ocidental, a realidade foi entendida como imutável, com altas taxas de crescimento, ancoradas em aparelhos de estado seguidoras de políticas keynesianas, de produção de infraestruturas e gastos sociais.

A fragilidade política e económica das velhas potências coloniais promoveu a descolonização e o desmembramento dos impérios coloniais, com o surgimento de numerosos países “não alinhados”, fora dos sistemas de alianças que aglutinavam os ocidentais (NATO) e os países de regime soviético (Pacto de Varsóvia); e entre os quais figuravam países de enorme população (China, Índia ou Indonésia) e figuras de relevo, como Chu-en-Lai, Nehru, Nasser ou Tito.

A reabertura do comércio internacional, a regularização do mercado monetário (Bretton Woods), o impacto da reconstrução do pós-guerra, com um grande crescimento dos rendimentos do trabalho, permitiu o auge do keynesianismo, o período dos “trinta gloriosos anos”, findos em 1973.

A primeira experiência neoliberal aconteceu no Chile, com Pinochet ao volante, parecendo uma ditadura militar, típica do Terceiro Mundo e da América Latina em particular. Mas não era. Pinochet não era um general latino-americano tradicional, cabeça de um grupo de oligarcas agrupados como uma pequena minoria de ricos, tendo do outro lado, enormes massas de pobres e classes médias muito reduzidas. O Chile em 1973 era uma sociedade com uma já longa tradição de democracia de mercado, com eleições e partidos, incluindo um PC e partidos de extrema-esquerda, como acontecia na Europa. Pinochet era o executante da aplicação de uma nova forma de capitalismo, o neoliberal, com o empenhado aconselhamento dos Chicago Boys e do seu chefe de fila, Milton Friedman[6]; este, que pelo seu desempenho recebeu o “nobel da economia”, em 1976. O neoliberalismo estreou-se através de uma ditadura fascista.

É a partir de Thatcher e Reagan, no início da década de 80 que o modelo neoliberal tomou o poder, se consolidou, espalhando-se como mancha de óleo, quebrando a relativa concertação entre o patronato e os trabalhadores – o chamado pacto social-democrata – através da total intolerância para com as reivindicações dos mineiros britânicos e dos controladores aéreos norte-americanos.

Os instrumentos do neoliberalismo podem resumir-se assim:

· O caráter antissocial do neoliberalismo conduz à domesticação das organizações de trabalhadores, já muito marcadas pela burocracia, pela rotina reivindicativa e sem perspetivas políticas; essa domesticação visa o embaratecimento dos custos do trabalho e a adequada atomização dos trabalhadores que os torne como manejável custo empresarial, essencial no âmbito de uma concorrência globalizada;

·   A segmentação da produção, a distribuição da produção dos seus componentes por vários pontos do planeta (deslocalização), tem como principal objetivo a minimização dos custos do trabalho; dentro desta lógica, sobressaem as dificuldades dos trabalhadores em se concertarem, uma vez dispersos pelo planeta e como produtores de componentes que, isolados não colocam em causa a continuidade do processo produtivo;

·      Por outro lado, promove-se a desregulamentação dos movimentos de capital, o primado do capital financeiro, protagonizado pelos grandes fundos de pensões, pouco interessados na tradicional existência de grupos económicos com ligações consolidadas a instituições financeiras (herdadas do último quartel do século XIX) e, bastante mais, em atividades especulativas, downsizings, segmentação de ativos, com simples perspetivas de rendabilidade a curto prazo.

·      Daqui resulta uma internacionalização do capital, coexistindo, colaborando ou competindo, dentro da cada fronteira, empresas e capitais de origem nacional com capitais das mais variadas origens, perdendo-se, sobretudo nos pequenos ou médios países, a relevância organizativa das burguesias autóctones, tornando-se as fronteiras, simples pontos de passagem, irrelevantes, para as redes globais de capitais, de mercadorias e trabalhadores;

·  O neoliberalismo investe também na universidade, inserindo fórmulas de mercado no seu funcionamento, favorecendo as áreas mais ligadas aos negócios, incutindo a ideia do empreendedorismo e da concorrência, como elementos de vulgarização da autoridade (praticada pelos emplumados catedráticos), da precariedade, da tecnocracia e da anomia política; sem que se prescinda, contudo, da mobilização de fundos públicos, onde os níveis gerais de riqueza não permitam propinas de valor astronómico;

·      Os grandes setores públicos tradicionais, nas áreas da saúde, da educação, dos transportes, da energia, são privatizados ou constituídos como elementos de canalização de fundos públicos para a viabilização de grupos privadas. Como as taxas de lucro, numa lógica de mercado são baixas, o Estado institui crescentes impostos sobre o trabalho e o consumo, para as elevar;

·  Finalmente, refiram-se os enormes impactos ambientais desta gestão da produção global, dominada pelas multinacionais; negados pelos mais fundamentalistas neoliberais que, no âmbito das ciências só conhecem o mercado.

O neoliberalismo foi sendo adoptado gradualmente pelas duas alas dos partidos-estado. Os primeiros foram os partidos ditos conservadores e liberais, seguidores de Thatcher e Reagan; depois, por duvidosos sociais-democratas ou socialistas como Blair, Schroeder ou os sucessivos chefes do PS português, depois de descobrirem o lado de onde sopra o dinheiro. Essa adesão foi particularmente notória, radical e mesmo divertida se se observar o fervor da reconversão dos apparatchiks do Leste em dedicados neoliberais.

A implosão da URSS deu um grande impulso ao domínio do neoliberalismo. Esse facto foi apresentado, durante algum tempo, como produto das vantagens do capitalismo neoliberal sobre o capitalismo de estado. O entusiasmo foi grande, defendendo-se a chegada ao fim da História, com a vitória do neoliberalismo e da democracia de mercado; a chegada do modelo perfeito, entretanto desembocou na crise financeira de 2008 e anos seguintes, que apresenta taxas de crescimento anémicas e guerras em várias frentes, calamidades climáticas, milhões de deslocados e refugiados e… Trump.

Por outro lado, o impacto da atuação das multinacionais, do sistema financeiro conluiados com oligarcas do finado modelo soviético, consistiu na privatização e saque dos setores públicos naqueles países do Leste, lançando uma ideia de modernidade que disfarçava mal as quedas de nível de vida, a precariedade e o desemprego. Em Portugal, sucedeu um processo semelhante ao aplicado sobre os despojos da URSS, se bem que o saque dos bens públicos se tivesse iniciado com Cavaco como primeiro-ministro, não tivesse estancado durante os governos PS, tendo pelo contrário, acelerado com Passos, o mainato da troika.

Na realidade, o modelo neoliberal gerado no Ocidente, abriu uma nova fronteira de desenvolvimento, alargou e densificou o chamado mercado global. No leste da Europa, gerou-se uma nova periferia que veio a concorrer com a única periferia europeia então existente - a periferia Sul - no seio de uma UE substancialmente alargada. E a Rússia voltou, depois do consulado de Ieltsin, a restabelecer com Putin, um regime autoritário, nacionalista, com uma coroa de estados em seu redor – os que não foram integrados na UE e na NATO – construindo com muitos desses, com a China e outras potências asiáticas a Organização para a Cooperação de Xangai, de onde está a surgir o adversário geopolítico do Ocidente.

Porém, a deslocalização das indústrias e depois, de muitos dos serviços, assim como a precarização e a quebra dos salários reais - mesmo que em paralelo com aumentos de produtividade trazidos por novas tecnologias - não alicerçam, naturalmente, o conveniente crescimento económico e o consumo de massas. O crescimento de que o capitalismo se nutre fica cativo, por um lado, das cascatas de dívida, pública ou privada, como formas expeditas de valorização do capital-dinheiro; e, por outro, da produção material que se concentra na China e nos “tigres asiáticos”, com capacidades tecnológicas, financeiras e de competências laborais próprias, a que se devem juntar a Alemanha e o Japão, como grandes potências exportadoras.

Há uns vinte anos o comércio na bacia do Pacífico superou as transações no Atlântico no que foi um primeiro marco na perda da hegemonia ocidental. Hoje, com a evidente decadência política e económica dos EUA e da Europa, num contexto de fraca dinâmica global, continua a Ásia a mostrar-se mais dinâmica. O mapa (mais acima) sobre as posições da China e dos EUA no campo das exportações mostra bem a dinâmica chinesa em regiões como a África e o Leste europeu ou mesmo, da América Latina.

A despeito da crise financeira que rebentou em 2008, reveladora dos limites intrínsecos do capitalismo de hoje, não se observam, nas últimas décadas, movimentos relevantes e continuados de trabalhadores e da multidão em geral, com uma perspetiva antissistémica. A segmentação da produção e a precariedade desligaram os trabalhadores uns dos outros e dos seus camaradas já reformados e não se constituíram redes de apoio aos desempregados; estes, relegados à condição de números estatísticos e às humilhações vindas dos IEFP’s nacionais. Os sindicatos são burocracias fechadas e alheias às alterações no âmbito da prestação de trabalho. Por seu turno, as redes sociais criam enormes matrizes de contactos mas, são impessoais e só raramente conduzem a movimentos efetivos, como aconteceu no caso do 15 M espanhol; que parcialmente foi adulterado com o surgimento do institucionalista Podemos e da sua estrela, o iluminado Iglésias.

As sequelas das falências e burlas bancárias, as recapitalizações de bancos à custa do erário público, a dívida que compromete várias gerações, o rearmamento, o caráter invasivo de leis restritivas dos movimentos e da privacidade, a espionagem global das nossas vidas, tudo isso sucede, sem polarizar em seu torno a animosidade adequada à gravidade da situação. As dificuldades marcadas por perdas de poder de compra, pelo desemprego, pela precariedade de vida, de guerras e terrorismo, são demasiadas vezes transfiguradas como resultantes da presença de imigrantes, de refugiados, da coexistência com grupos étnicos ou religiosos distintos, tomados como ameaçadores, desrespeitadores da identidade grupal, comunitária ou nacional. Desta cultura dominante na Europa resulta a relativa estabilidade e aceitação do sistema capitalista e das suas instituições políticas, com repetidas promessas de crescimento e mais emprego a que se sucedem, por rotina, parcos resultados.

Desse enquadramento resultou o referendo favorável ao Brexit, contra as posições dos tories, próximos da City ou do Labour, protagonizada por gente assustada perante a constante chegada de novos imigrantes ou com o receio de esvaziamento dos fundos públicos de pensões. A incerteza quanto ao futuro, a descrença face aos burocratas europeus, demagogos, ineptos e autoritários, desenvolveu uma pulsão xenófoba encabeçada por Nigel Farage e Boris Johnson. A concretizar-se e em moldes que se mantêm muito nebulosos, não parece que a Grã-Bretanha, no seio de um novo enquadramento, receba facilidades da UE-27, que quererá aproveitar o ensejo para avisar quaisquer novos candidatos à utilização do artº 50º.

Também nos EUA, a desvalorização interna e a entrada de imigrantes alimenta as posições de ultra-direita, nacionalistas, xenófobas e economicamente delirantes pouco inclinada a apoiar o duopólio político entre democratas e republicanos; mas a aceitar um outsider Trump, que se impôs ao aparelho republicano e derrotou o establishment democrata, prometendo um (pouco provável) retorno da indústria, entretanto deslocalizada, às cidades norte-americanas, com o ressurgimento de empregos estáveis e bem pagos. O mesmo vem sucedendo com Orban na Hungria que colocou barreiras na fronteira com a Sérvia e promulgou legislação genocida contra os sem-abrigo ou os ciganos. Na Europa Ocidental o nacionalismo e o fascismo (as classes políticas e os media preferem usar a branda designação de “populistas”) recolhe os seus apoios nas cinturas das grandes cidades, preenchidas por desempregados, trabalhadores pobres e precários, pensionistas em dificuldades, que encontram em imigrantes ou nos seus descendentes, igualmente desprezados, catalisadores dos seus medos e dificuldades. Por seu turno, a continuidade de Rajoy deve-se ao apoio dos assustados com o desmembramento de uma Espanha imperial e descrentes de que o PSOE seja eficaz nesse desiderato, se voltar a ser o vértice do regime.

Na Europa, cada atentado cometido ou cada refugiado que chega, não são factos encarados como essencialmente resultantes das intervenções militares ocidentais, em África ou no Médio Oriente; aqui, na continuidade da desestruturação e da partilha desenhada por Sykes e Picot, há quase cem anos. Na Líbia, as destruições promovidas pelo nobel da paz Barack Obama visaram a libertação ds líbios e não a apropriação dos seus recursos energéticos, como é… óbvio para quem acredite no pai natal.

Os povos daquelas regiões, em grande maioria muçulmanos, são apresentados como portadores de uma violência própria, endémica, crescendo o medo e a irracionalidade em quantos compram a ideia idiota de que aqueles se tornarão maioria na Europa. Curiosamente, há duas décadas, no contexto da campanha de desmembramento da Jugoslávia e de diabolização dos sérvios, os bons do filme, os protegidos do Ocidente, na Bósnia[7], eram… os muçulmanos. Quem também beneficia disto é a entidade israelita, genocida e racista, visceralmente anti-árabe, que assiste deliciada às lutas e destruições no Médio Oriente, intervindo discretamente nas mesmas, para manter o fogo vivo; e agora confortada pelo demente Trump.

Em todas essas derivas nacionalistas parece ficar esquecido que não há memória de tratamento preferencial e amigável dos trabalhadores e do povo às mãos das burguesias nacionais acantonadas atrás das suas fronteiras. Os fascismos ocidentais como o capitalismo de estado soviético souberam arregimentar os sindicatos nacionais, anular os que mantinham uma perspetiva de classe, independente ou adversa ao poder, com o auxílio das polícias políticas. Os trabalhadores isolados e desorganizados, fechados dentro das fronteiras, submetidos às necessidades dos seus capitalistas não podem esperar nada de bom.

Por exemplo, no Portugal salazarista, nem sequer aos trabalhadores era concedido o direito de emigrar, tinham de o fazer a “salto” pagando a passadores e não isentos de riscos até cruzarem dos Pirinéus; o seu dever era o de servir os toscos capitalistas nacionais. Recentemente, pelo contrário, o famoso Passos – implicitamente reconhecendo a tosquice do empresariato luso, aconselhou os portugueses a emigrar para ganharem empreendedorismo fora, regressando depois para desenvolverem a madrasta Pátria; para quem trabalha em hospitais ingleses ou na construção civil na Suiça, o desejo de empreendedorismo claramente se… sobrepõe ao da sobrevivência.

No atrasado capitalismo português de Salazar entendia-se não ser necessária grande escolaridade para as mulheres, pois aproveitar-se-iam desses conhecimentos para “escreverem bilhetinhos aos namorados” (Salazar dixit). Assim, em 1970[8], 31% das mulheres eram analfabetas e só 0.5% tinham formação superior (20% e 1.4% para os homens, respetivamente). A situação melhorou bastante desde então, como evoluiu também nos outros países da Europa o que, contudo, não coloca Portugal melhor do que ostentar o mais baixo perfil educacional da UE.

Os EUA, como a maioria dos países europeias pouco ou nada fizeram para criar ou manter uma matriz de relações inter-industriais densa, como aconteceu com a Alemanha, o Japão, a Coreia do Sul e, mais recentemente a China; perderam a sua base industrial - excepto no complexo militar-industrial - e criaram empregos pouco qualificados na Walmart e na restauração, nos centros degradados das cidades onde antes havia uma classe média que…votava no burro (Partido Democrata).

A vitória de Trump com a sua promessa de América para os americanos, com repúdio ou expulsão de latinos ou muçulmanos, para garantir o emprego e salários compensadores aos brancos pobres, é uma verdadeira burla política. Os capitalistas americanos, mormente as suas grandes multinacionais que transferiram indústrias para a Ásia, mormente para a China, não vão voltar atrás só porque Trump incluiu esse retorno na campanha eleitoral; e as multinacionais tecnológicas também não estão dispostas a perder os imigrados de alta qualificação que trabalham nos EUA, só porque são latinos, muçulmanos...

Trump, como os nacionalistas europeus, ainda não percebeu que a produção mundial está globalizada e já não repartida por países; e que o regresso dos EUA ao modelo antigo, corresponderia a grandes aumentos de preços dos bens, tornando-os inacessíveis para os salários americanos de hoje, estagnados em termos reais há longos anos. Admitindo que Trump saiba o que é o keynesianismo não saberá que num mundo globalizado, os efeitos de multiplicador, visíveis no tempo do New Deal, têm uma eficácia muito menor porque se esvaem substancialmente através de fronteiras porosas, sob a forma de importações de bens, serviços, juros, lucros, royalties. Os fãs lusos da LePen ignoram isto ou ocultam essa realidade para manterem a sua clientela; tal como Salazar precisam de se rodear de ignorância para se sentirem os sábios da aldeia.

4.2 – O desenvolvimento do espirito do fascismo

Há alguns anos atrás debruçámo-nos sobre uma nova era fascista e genocida que estaria em curso, com incidência inscrita no terreno da paróquia lusa e ainda antes da crise da dívida e da intervenção da troika. Esse renovado fascismo não tem forçosamente de apresentar o aspeto sinistro da figura seguinte. A História só se repete enquanto farsa[9].


Essa nova escala da produção de bens e serviços inerente à globalização tende a reduzir o papel das pequenas e médias potências, uma vez que não mais será possível o estabelecimento de protecionismos nacionais a favor dos capitalistas autóctones, sobretudo dos de menor gabarito, conhecidos por PME’s; a Comissão Europeia zela para que isso não aconteça. Estas empresas, encontram-se submetidas a uma pressão financeira asfixiante ou, pura e simplesmente com crédito inacessível, seja para procederem a investimentos, seja para fazerem face aos ciclos dos gastos correntes. Por outro lado, têm dificuldades para sobreviver face ao poder das multinacionais e dos grandes grupos nacionais, estes, maiores beneficiários das deslocalizações, de economias de escala, subvenções públicas e fiscalidade mais doce, dadas as suas fortes ligações às classes políticas. Em países mais desestruturados, como Portugal, o não pagamento de impostos ou de encargos sociais constitui um recurso muito utilizado, “normal” que, depaupera o orçamento, alimentando maior agressividade fiscal sobre o trabalho e o consumo.

Nesse contexto, as tais PME’s incidem os seus esforços em tudo o que pode baratear os custos do trabalho, como horas de labor não pagas, horários extensos, baixos salários, fórmulas de obviarem a descontos para a segurança social e a precariedade conveniente que facilite o despedimento e a sujeição.

Como muitas dessas empresas dependem, para sobreviver, dos níveis de consumo da população remediada ou pobre, não tendo poder para influenciar o partido-estado, ao serviço dos altos escalões do capital, mostram-se desavindos com a democracia dita representativa que, de facto, não as têm na devida consideração. Assim, entendem-se melhor defendidos com o regresso de fronteiras, barreiras alfandegárias, desvalorizações de moeda, maior disciplina no trabalho, favorecendo o nacionalismo, o etnicismo, a cultura pátria, as identidades, elementos que funcionam como excelentes antecâmaras do fascismo. Não admira pois que, na Europa, a existência de liberdade de comércio, com a anemia económica persistente, promova o surgimento e a relevância de partidos nacionalistas, xenófobos e fascistas.

Como é evidente, estes capitalistas pequenos e médios, que não se ancorem em capacidades tecnológicas, financeiras ou da dimensão adequada, não querem o fim do capitalismo; querem a sua continuidade, assente na continuidade da existência de trabalhadores atomizados, precários e mal pagos. Muitos sonham tornar-se grandes capitalistas, realizar a conhecida lenda do self-made man que, em geral repousa em desenfreada exploração laboral e vigarices, embora isso não seja evidenciado naquele romance. Por detrás de uma grande fortuna há sempre um grande roubo.

No fundo da escala social, apresenta-se um vasto leque de trabalhadores, alternando períodos de desemprego com funções laborais precárias, com casas por pagar ou com salários há longo tempo congelados, gente com trabalho mas, no limiar da sobrevivência, submetida a uma punção fiscal agressiva, confrontando serviços públicos degradados ou restringidos, preços de bens essenciais elevados, com filhos adultos ou progenitores a seu cargo, abandonados ou estranhos à ação sindical, atomizados, entregues à incerteza do dia seguinte. Há também a contar com pensionistas com retribuições parcas ou congeladas, muitas vezes depois de uma saída antecipada do trabalho, aliciados por patrões e governos, competindo depois na procura de biscatos. E ainda, jovens, pouco crentes nas virtudes da escola como forma de atingir uma habilitação conducente a um emprego digno e que se entregam à situação de nem-nem (nem escola, nem trabalho), com passagens, mais ou menos regulares, pelo consumo de drogas.

Muita desta gente é enormemente despolitizada; mesmo os mais jovens, habilidosos utilizadores de telemóveis, tablets e computadores. As televisões – o entretenimento dos pobres – intercalam-lhes novelas com futebol, opinion-makers, publicidade e espetáculo político, um conjunto que é mais tóxico que uma dieta de Big Mac’s. Querem atenção, contentam-se de afetos e sorrisos de um qualquer mandarim de verbo fácil e, portanto, são facilmente manipuláveis, aderindo a qualquer ladainha que lhes reconstitua um passado idílico, onde o capitalismo era mais suave. Querem ser explorados, ma non tropo.

Como vítimas do neoliberalismo, das grandes empresas globalizadas e dos bancos, aqueles pequenos e médios empresários tornam-se aliados próximos e objetivos das vítimas do desemprego, da redução dos salários reais, das deslocalizações, coincidindo na defesa da soberania nacional, dos capitais nacionais, do retorno a mercados nacionais protegidos da concorrência, como aconteceu nos anos 30 do século passado, com a retração das relações comerciais globais. No chamado mundo ocidental e neste contexto de potencial concórdia e concertação implícita, a realidade é desejável se imutável, com altas taxas de crescimento, ancoradas na intervenção de aparelhos de estado como ativos executantes de políticas keynesianas de construção de infraestruturas e de elevados gastos sociais.

É o tipo de pessoas que votou no Brexit, pensando na segurança vivida nos tempos vitorianos em que no império britânico o sol nunca se punha e incapaz de perceber que a Grã-Bretanha é apenas uma potência de médio gabarito, cuja moeda esteve presente em 12.8% das transações cambiais em 2016, num total de 200%, uma vez que cada transação envolve um par de divisas. Resta saber se, a concretizar-se o Brexit, a saída ou a redução da atividade financeira a partir de Londres permitirá à libra manter essa posição. E a posse da bomba atómica de pouco lhes serve sobretudo quando se enganam na direção em que enviam os seus mísseis nos treinos dos submarinos Trident.

Algumas gerações atrás, na Europa foi encorajada a imigração de trabalhadores da periferia, da margem sul do Mediterrâneo e da África profunda, para as funções tomadas como menos nobres que os trabalhadores de raiz europeia não preenchiam devido à desfavorável relação entre penosidade e remuneração. Milhões dessas pessoas constituíram famílias, os seus filhos e netos nasceram na Europa, receberam uma cultura europeia e sofrem do anátema que surge a propósito da cor da pele ou do apelido, reveladores das suas origens. Em tempos de escassez de trabalho e de condições saudáveis de vida, a concentração dessas pessoas em áreas guetizadas torna-os alvos fáceis de repúdio e ódio, sobretudo quando há atentados. Quando, por razões completamente estúpidas, se gera concorrência e divisões entre os pobres, está bem de ver que são os ricos e os poderosos a beneficiar.

O neoliberalismo gerou todo este quadro de desintegração social, de individualismo e concorrência entre as pessoas, menosprezando atitudes solidárias ou coletivas o que, frequentemente as leva ostracizar o Outro, seja pela cor da pele, pela origem nacional, pela cultura, porque é muito novo ou demasiado velho; porque sim. Assim se forma um quadro de decadência e abandono, com poucos vencedores e uma grande maioria de vencidos que se digladiam entre si; um espetáculo que diverte capitalistas e mandarins. Um caldo de desespero, pobreza e insegurança propício ao pulular de demagogos, gurus e fascistas que, com rótulos de direita ou de esquerda, defendem o retorno ao encerramento patriótico, à preferência pelos capitalistas nacionais, unidos todos, patrões e trabalhadores na contemplação da bandeira, a cantar o hino e a contar as notas de moeda nacional que faltam na carteira. Arbeit macht frei.

4.3 – Um novo internacionalismo, precisa-se !

A globalização, cavalgada pelo capitalismo, com as suas formas de domínio da multidão, pelas armas, pela repressão, pelo estado de excepção, alargados muito para além dos vários espaços nacionais, em evidente e acelerada perda de poderes, exigem uma forma de luta dos povos num patamar bem acima do plano nacional. O que recoloca a questão do internacionalismo, popular há uns cem anos.

No passado, essas pulsões de libertação promoveram entre os trabalhadores o internacionalismo como arma de defesa contra as rivalidades entre as potências e as suas classes dominantes e que os mobilizavam para as guerras, sem os isentarem das destruições provocadas pelas mesmas. O internacionalismo estava, no primeiro quartel do século XX, intimamente ligado à construção de sociedades igualitárias, sem capitalistas, sem autoridade, sem Estado; o que se designou por anarquismo.

A revolução russa de 1917 que inicialmente gerou muitas esperanças de libertação dos trabalhadores face ao domínio do capital, rapidamente evoluiu para uma oligarquia de partido único, de gestores, militarizada e repressiva, que construiu um capitalismo de estado, com forte recurso a trabalho forçado. As réplicas à revolução de 1917 que surgiram por todo o lado, tenderam a constituir-se sob a forma de partidos comunistas como produtos derivados da URSS, vocacionados para a defesa dos seus interesses estratégicos nacionais, enquanto “pátria do socialismo”. Esta designação, no seu âmago, contempla uma contradição, pois o socialismo ainda era encarado como algo de credível e antagónico face às pátrias, como prisões de povos. Quando sobreveio a II Guerra, o internacionalismo que teve forte presença nos campos de batalha na guerra anterior, de 1914/18 e, mais tarde, na defesa da República espanhola contra o fascismo, estava diluído na luta antifascista desenvolvida em planos nacionais e dirigida de Moscovo, na qual também se dissolvia a luta contra o capitalismo.

Herdeiras da tradição de ligação à URSS como farol e exemplo do que se designou por socialismo, as esquerdas europeias após o final da II Guerra apostaram num gradualismo político e em práticas burocráticas de apoio à reconstrução dos capitalismos nacionais, integrando-se completamente no jogo partidário, sem perspetivas de mobilização popular e de ruptura sistémica.

Sofreram um abalo forte na sua hegemonia ideológica nos finais dos anos 60, quando lutas sociais em França, Itália e Alemanha colocaram no terreno abordagens anticapitalistas e críticas do modelo soviético, com o seu economicismo e autoritarismo, tal como o modelo ocidental, produtivista, repressivo e puritano. Quando o derrube do Muro e a desagregação da URSS evidenciaram o fracasso do chamado socialismo, os partidos comunistas afundaram-se, assumiram-se, na menos má das hipóteses em formações sociais-democratas, quando não assumidamente neoliberais, com a verve típica dos conversos recentes. Cederam o lugar a outras formações sociais-democratas ou ecologistas identicamente sem teoria ou práticas de ruptura, com apoios sociais próximos dos apoiantes dos partidos-estado (como nos casos do BE, do Die Linke e, recentemente do Podemos); mas, mantêm-se num figurino tradicional, fechado, autoritário e nacionalista, nos casos de Portugal, Grécia, Chipre ou República Checa.

A globalização, acelerada pela ideologia neoliberal iniciada nos anos 70, depois do fim da convertibilidade do dólar, da grande subida do preço dos combustíveis e atingidos os limites do keynesianismo, correspondeu a um género de internacionalismo do capital, disposto a anular as barreiras nacionais e a integrar ou a destruir as burguesias nacionais, que não tivessem capacidade para se imporem como atores nessas redes que enformam a globalização, para agirem numa escala muito mais vasta do que os seus estritos territórios e populações. Dessa situação, na Europa surgiram os diversos alargamentos da então CEE, com a agregação de pequenas e médias nações, num quadro subalterno adequado à valia dos respetivos e autóctones conjuntos de capitalistas.

À internacionalização do capital globalizado, à mundialização da produção de bens e serviços, à dominância de um sistema financeiro predador, à acelerada destruição do planeta, tem de corresponder uma imprescindível oposição que atualmente não existe no seio dos regimes políticos instituídos. É obrigatório dar-lhe resposta através do desenho e da construção de uma lógica integrada de atuação dos povos, sob a forma de redes rizomáticas, sem chefias carismáticas e imunes à repressão, por essas mesmas caraterísticas, tirando partido das tecnologias que, hoje, já integram os trabalhadores, os despojados, os abandonados. É preciso construir um internacionalismo do século XXI, como instrumento para a destruição do capitalismo.

Carlos Taibo sintetiza a questão que se nos coloca, hoje. Ou ganhamos a consciência de que temos de sair urgentemente do capitalismo, regressando a lógicas de cooperação, solidariedade e apoio mútuo; ou entra-se num caminho de salve-se quem puder, com guerras, pobreza acentuada, desdém para com as alterações climáticas (como anunciado por Trump) e regimes fascistas e genocidas.

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[1] Mesmo sem atribuir dignidade ao patronato e à iniciativa privada, na URSS, o modelo corporativo de subordinação dos trabalhadores aos interesses do Estado (o grande patrão, de facto) já havia sido aplicado, antes da sua formalização na Itália fascista. Na realidade se o “socialismo” correspondia ao controlo estatal da economia, os trabalhadores e todos os cidadãos deveriam funcionar como contratados pelo Estado, não sendo concebíveis conflitos entre esse sui generis patrão e os trabalhadores ou a população em geral.

[2] Em maio de 1933, Hitler, já chanceler, apropria-se dos fundos sindicais e cria o DAF – Deutsche Arbeitsfront, no qual todos os trabalhadores eram obrigados a pertencer e que fornecia apoios significativos no lazer, no desporto, na cultura, na educação, no sentido de gerar uma unidade entre os alemães baseada na raça, na luta e no… führer ( a Volksgemeinschaft).

[3] Em 1925/26 surge a organização sindical fascista baseada na colaboração de classes e dirigida por fascistas, sob controlo estatal, sendo proibidas as greves e qualquer agitação social,. A Carta del Lavoro surgiu em 1927 para regular as relações entre Estado, patronato e trabalhadores, num modelo que se veio chamar de corporativismo.

[4] Em Portugal, o Estatuto do Trabalho Nacional publicado em 1933 é uma cópia muito fiel da Carta del Lavoro italiana havendo também réplicas da mesma no Brasil de Getúlio Vargas e na Turquia de Ataturk. Em Portugal a sua publicação implicou a ilegalização dos sindicatos existentes, cujo esmagamento tem como símbolo de resistência, a revolta dos trabalhadores na Marinha Grande, em 18 janeiro de 1934, entre outros lugares.

[5] Na Alemanha, para além de 15 campos de concentração principais havia mais 400 e os gastarbeiter (imigrantes) - cerca de 9 milhões em 1942 - acabaram por ser trabalhadores forçados, tal como os prisioneiros de guerra. Em Portugal, felizmente, o ruralismo saloio de Salazar evitou aos presos políticos o trabalho forçado.

[6] Friedman foi dos primeiros neoliberais a ser premiado com o “nobel”; não porque introduzem aprofundamentos teóricos de compreensão da realidade mas porque contribuem para o apuro da lógica neoliberal ou apresentam meras técnicas que interessam aos “mercados”, mormente financeiros; e que muitas vezes se revelam como perfeitas falsidades. Sobre este tema, veja-se:

[7]  A Bósnia foi o primeiro cenário europeu para o jihadismo, abençoado pelos EUA e pela NATO

[8]  Visão, 17/4/2014

[9] Embora o apoio de Trump na deslocação da representação dos EUA na sua fortaleza sionista, de Tel-Aviv para Jerusalém, possa constituir um sinal de um regresso ao passado; tal como o retomar da diabolização do Irão ou a cruzada anti-imigrantes e anti-muçulmanos, provavelmente inspirada pelo genro Jared, sionista encartado.

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